Toni e David na companhia dos filhos de Alyson, Jéssica e Filipe
O brasileiro Toni Reis, 51 anos, conheceu o inglês David Harrad, 57, na Inglaterra, em 1990, e eles iniciaram um namoro. Em 1991, decidiram mudar-se para Curitiba. “Na época, não havia reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo no Brasil, então David não podia ter um visto de permanência com base na ‘reunião familiar’, como acontecia para casais binacionais heterossexuais”, conta Toni. David permaneceu irregular no Brasil, foi autuado em 1996 com ameaça de expulsão do país, e só veio a conseguir o visto permanente em 2005. Nesse ano começou uma nova luta: adotar como casal o primeiro filho. “Se adotássemos separados, como solteiros, e um de nós viesse a falecer, o outro não teria o direito da guarda da criança.” Foram três anos até conseguirem a permissão da adoção conjunta, mas com a condição imposta pelo juiz de que a criança tivesse mais de dez anos e que fosse menina. “Achamos que a decisão foi discriminatória e recorremos. Na segunda instância, ganhamos por unanimidade o direito de adotar conjuntamente sem qualquer restrição”, conta Toni. “No entanto, um promotor do Ministério Público recorreu e levou o caso ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça, alegando que casais do mesmo sexo não formam uma família. O STF rejeitou o recurso, mas o STJ só proferiu sua decisão em 2014, retirando a possibilidade de adotarmos na nossa comarca. Uma demora judicial um tanto cruel. O promotor recorreu novamente da decisão do STJ e a ministra Carmem Lúcia decidiu a nosso favor em março de 2015, dez anos após o início do processo de adoção.”
A primeira adoção, iniciada em 2011 com Alysson, 11 anos, não foi fácil. O menino havia fugido de sete abrigos e sido rejeitado pela mãe todas as vezes em que tentou voltar para casa. Quando o casal conheceu Alysson, o garoto estava há um ano na casa de uma família de testemunhas de Jeová, que tentou influenciá-lo a rejeitar a adoção. Toni conta que Alyson chegou a declarar: “Sabiam que eu tenho nojo de homossexuais?” no dia em que foram fazer uma nova carteira de identidade para o filho. Depois de vários encontros e grupos de ajuda, Alyson superou o preconceito e hoje a família tem mais dois filhos, os irmãos Jéssica, 12 anos, e Felipe, 8 anos.
Famílias, o plural da questão
As novas configurações familiares brasileiras exigem leis e discussões sobre identidade, afeto e núcleo familiar

por Laís Modelli
A decisão é recente: o Brasil permite o casamento entre pessoas do mesmo sexo desde maio de 2013. Na data, o Conselho Nacional de Justiça publicou a Resolução n. 175, que obriga os cartórios brasileiros a converterem união estável homoafetiva em casamento. Somente naquele ano, o país registrou 3,7 mil matrimônios entre pessoas do mesmo sexo, segundo dados do IBGE de dezembro de 2014. São Paulo foi o estado com maior número de registros, com 1945 casamentos (897 uniões entre homens e 1.048 entre mulheres), enquanto o Acre foi o único estado a não celebrar nenhum registro no ano.
Apenas 22 países no mundo permitem o matrimônio homoafetivo e reconhecem os direitos dos parceiros homossexuais, como a licença-maternidade, a adoção de filhos, a herança e o divórcio. A Holanda foi o primeiro país a garantir tais direitos, aprovados em dezembro de 2000. Na ordem cronológica de aprovação, fazem parte da restrita lista: Bélgica (2003), Espanha (2005), Canadá (2005), África do Sul (2006), Noruega (2009), Suécia (2009), Portugal (2010), Argentina (2010), Islândia (2010), Dinamarca (2012), Brasil (2013), Uruguai (2013), Nova Zelândia (2013), França (2013), Inglaterra (2014), País de Gales (2014), Escócia (2014), Luxemburgo (2014), Finlândia (2015), Irlanda (2015) e Estados Unidos (2015).
Segundo o deputado federal Jean Wyllys, autor de projetos voltados para o público LGBT, a experiência argentina deve ser seguida no Brasil. “A Argentina é o país com a legislação mais avançada do mundo em matéria de direitos da população LGBT. A campanha pelo casamento civil igualitário, aprovado em 2010, promoveu um intenso e frutífero debate nacional sobre os direitos LGBT. Depois do casamento, outras leis foram aprovadas, como a de identidade de gênero, e diversas políticas públicas foram implantadas. Houve uma mudança enorme na percepção da sociedade argentina sobre a diversidade sexual”, explica Wyllys.
Ainda que o Brasil garanta o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a juíza aposentada Maria Berenice Dias explica que o país não assegura o direito por força de lei, mas somente por decisão da Justiça. “Por não existir essa lei, ainda há espaço para que iniciativas como o Estatuto da Família ganhem espaço”, explica Berenice. Proposto pelo presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, o Estatuto da Família é um projeto de lei, em tramitação, que tenta definir o que pode ser considerado uma família – excluindo, entre outras configurações, a união entre pessoas do mesmo sexo. De acordo com a ala progressista de juristas brasileiros, o Estatuto da Família não tem sentido de existir, uma vez que ser homossexual não é ilegal no país. “A Justiça avançou graças ao poder judiciário e assegurou o direito de casamento entre pessoas de mesmo sexo, mas o Estatuto da Família foi uma manobra para tentar excluir esses direitos que já estão assegurados. Nosso Legislativo, conservador e preconceituoso por ordem religiosa, planta posições extremamente reacionárias”, afirma a jurista.
Para Jean Wyllys, os parlamentares que apoiam o Estatuto da Família sabem que ele não pode ser aprovado. “A única finalidade desse projeto, do ponto de vista legal, é retirar direitos de uma parcela da população. É como se um deputado apresentasse uma lei para que os negros deixassem de ter algum direito que atualmente têm, ou os judeus, ou as mulheres etc. É, na verdade, um Estatuto Contra Uma Parte Das Famílias, e que nada traz de bom para as demais famílias. É perverso. A finalidade política do projeto – e os deputados sabem que não vão conseguir aprová-lo – é usá-lo como propaganda para promover o ódio e a violência”, afirma.
Além da resolução de 2013, o Conselho Nacional de Justiça já havia avançado na questão das famílias homoafetivas em 2009, quando mudou o padrão da certidão de nascimento do tradicional “pai e mãe” para o termo “filiação”.

Making of do ensaio fotográfico de Simone Rodrigues para o livro Nomes do amor / Foto: Simone Rodrigues
A homoafetividade antes dos anos 2000
Berenice, a primeira mulher juíza do Rio Grande do Sul, foi responsável pela decisão pioneira no Brasil de reconhecer, em 2001, um casal de homens como uma família. “Eles viveram juntos por 27 anos, até que um deles faleceu. Ele tinha patrimônios adquiridos antes do começo da união, o que não dava para reconhecer como uma sociedade entre os dois”, explica. “A discussão era: se eles fossem reconhecidos como casal, haveria um herdeiro; caso contrário, o parceiro não teria direito a nada e todo o patrimônio iria para o município. O caso se tornou chocante ao demonstrar que aquele homem, que tinha acompanhado seu parceiro a vida inteira, de repente ficaria até sem casa para morar porque eles não eram reconhecidos como família.” A decisão de Berenice, junto a seus colegas do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, considerou que família é determinada pela relação de afeto e não pelo gênero dos parceiros. A partir do caso, a juíza conseguiu mudar o termo de “homossexualidade” para “homoafetividade”. “A troca foi importante por esclarecer que os relacionamentos não devem ser da ordem da sexualidade, e sim da ordem da afetividade”, explica.
O brasileiro Toni Reis, 51 anos, conheceu o inglês David Harrad, 57, na Inglaterra, em 1990, e eles iniciaram um namoro. Em 1991, decidiram mudar-se para Curitiba. “Na época, não havia reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo no Brasil, então David não podia ter um visto de permanência com base na ‘reunião familiar’, como acontecia para casais binacionais heterossexuais”, conta Toni. David permaneceu irregular no Brasil, foi autuado em 1996 com ameaça de expulsão do país, e só veio a conseguir o visto permanente em 2005. Nesse ano começou uma nova luta: adotar como casal o primeiro filho. “Se adotássemos separados, como solteiros, e um de nós viesse a falecer, o outro não teria o direito da guarda da criança.” Foram três anos até conseguirem a permissão da adoção conjunta, mas com a condição imposta pelo juiz de que a criança tivesse mais de dez anos e que fosse menina. “Achamos que a decisão foi discriminatória e recorremos. Na segunda instância, ganhamos por unanimidade o direito de adotar conjuntamente sem qualquer restrição”, conta Toni. “No entanto, um promotor do Ministério Público recorreu e levou o caso ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça, alegando que casais do mesmo sexo não formam uma família. O STF rejeitou o recurso, mas o STJ só proferiu sua decisão em 2014, retirando a possibilidade de adotarmos na nossa comarca. Uma demora judicial um tanto cruel. O promotor recorreu novamente da decisão do STJ e a ministra Carmem Lúcia decidiu a nosso favor em março de 2015, dez anos após o início do processo de adoção.”
A primeira adoção, iniciada em 2011 com Alysson, 11 anos, não foi fácil. O menino havia fugido de sete abrigos e sido rejeitado pela mãe todas as vezes em que tentou voltar para casa. Quando o casal conheceu Alysson, o garoto estava há um ano na casa de uma família de testemunhas de Jeová, que tentou influenciá-lo a rejeitar a adoção. Toni conta que Alyson chegou a declarar: “Sabiam que eu tenho nojo de homossexuais?” no dia em que foram fazer uma nova carteira de identidade para o filho. Depois de vários encontros e grupos de ajuda, Alyson superou o preconceito e hoje a família tem mais dois filhos, os irmãos Jéssica, 12 anos, e Felipe, 8 anos.

Em família, Weykman e Rogério / Foto: Simone Rodrigues
As novas configurações familiares
Quando a auxiliar de produção Eva, 45 anos, e a advogada Dalia, 45, se conheceram, em 1989, o Brasil acabava de aprovar a Constituição de 1988, que define família como o resultado da união entre um homem e uma mulher ou um dos pais e seus filhos. O relacionamento entre as duas se concretizou somente em 1995, mas nada havia mudado no Brasil sobre a questão homoafetiva. O apoio da família e dos amigos, contudo, encorajou o casal a prosseguir e, em 2009, a adotar a primeira filha, Daisa. Com cinco anos na época, a menina havia sido devolvida ao orfanato por diversos outros casais. “Eles queriam alguém com paciência para não devolvê-la”, conta Dalia. Um ano depois, adotaram a segunda filha, Thamara, com 12 anos na época. Em 2013, ano da Resolução n.175, Dalia e Eva decidiram se casar. Naquele momento, o casal relata ter sentido, pela primeira vez, discriminação: o juiz negou o pedido de casamento, e Dalia e Eva entraram com um mandato de segurança. Juntas há 18 anos, tiveram que esperar mais um ano para conseguirem a permissão para casar. Conquistado o direito, tornaram-se o primeiro casal homoafetivo a casar no civil e na igreja em um mesmo ato. “Somos e sempre seremos uma família, e devem nos respeitar por isto”, afirma Dalia. O casal agora se prepara para adotar dois sobrinhos que ficaram órfãos recentemente.
O auditor fiscal Rogério Koscheck, 52 anos, e o contador Weykman Padinho, 39 anos, iniciaram o relacionamento em 2006. Oficializaram a união estável em 2013 e se casarão em breve. Desde o início, ambos tinham vontade de serem pais. “Envolvimento com outras pessoas, reprodução assistida, barriga de aluguel, adoção à brasileira, ou quaisquer outras formas de paternidade que não fosse a adoção, não eram opção”, conta Rogério. Em janeiro de 2013, o casal iniciou o processo de adoção. Um ano depois, foram indicados quatro irmãos, em Brasília. No entanto, um outro casal, já habilitado, teve a preferência legal na adoção. Um mês depois, apareceram mais quatro irmãos, dessa vez no Rio de Janeiro, com idades entre dois meses e 11 anos. Filhos da mesma mãe, todas as crianças haviam sido expostas ao vírus do HIV e passavam ou já haviam passado por tratamento. Sem preconceitos, Rogério e Weykman iniciaram a adoção em junho de 2014. O processo foi finalizado somente no começo de 2016 e hoje todas as crianças negativaram o HIV. O casal conta ter percebido que, desde que a família aumentou, vez ou outra existem olhares de surpresa quando estão em lugares públicos. “Estava na padaria do bairro em que morávamos, com minha filha mais velha. Ao indicá-la como minha filha, a atendente olhou-a de cima a baixo e disse: ‘Não pode ser!’. Retruquei: ‘Ela é minha filha!’. A mulher respondeu novamente: ‘Não pode ser, mesmo!’. Então perguntei se ela tinha filhos e indaguei: ‘Você tem completa certeza de que eles são seus?’”, lembra o auditor.

Em família, Dalia e Eva / Foto: Simone Rodrigues
Rogério é um dos principais militantes pelos direitos das famílias homoafetivas e diretor da Associação Brasileira de Famílias Homoafetivas, ABRAFH. Segundo o auditor, a principal preocupação da Associação é a aprovação do Estatuto da Família. “Antes de ser aprovado, esse projeto já causou problemas até em nosso lar. Nossa filha mais velha, ao ver as reportagens a respeito, me perguntou: ‘Pai, se nossa família não é família, nós vamos ter que voltar para o abrigo?’. Essa pergunta, de uma criança de 12 anos, denota o mal que a irresponsabilidade e a desumanidade de alguns parlamentares já estão causando.”
As famílias acima estão retratadas no livro recém-lançado Nomes do amor: o amor que ousa dizer seu nome, da fotógrafa Simone Rodrigues cujo prefácio é assinado por Jean Wyllys. A obra – inspirada no trabalho da fotógrafa sul-africana Zanele Muholi, que retrata lésbicas africanas – reúne 28 famílias brasileiras homoafetivas, com ou sem filhos, biológicos ou adotados. O projeto nasceu em 2013, quando Simone sentiu incômodo diante da representação feita pela mídia do público LGBT. “O gay é sempre o homem idealizado, com o corpo como objeto de desejo, e a mulher lésbica sempre aparece junto de outra mulher, fruto de uma fantasia e fetiche masculino”, afirma Simone. “A importância de mostrar o cotidiano das famílias homoafetivas é que boa parte do preconceito é impulsionado pela ignorância. A diversidade sexual que existe no Brasil não pode viver sob os modelos ditados pelo universo hétero da sociedade conversadora, que pensa o público LGBT como uma ameaça à família tradicional. Que tipo de ameaça essas pessoas podem oferecer? Nenhuma. Elas estão vivenciando novas possibilidades de construir um núcleo familiar, tão legítimas quanto famílias hétero, já que estão baseadas no afeto e no amor para construir uma vida comum.”
A falta de dados sobre as famílias homoafetivas também é outro problema constante para a questão no Brasil. As últimas estatísticas datam de 2010, em pesquisa realizada pelo IBGE, que identificou sessenta mil casais homoafetivos no país, a maioria formada por católicos (47,4%) e mulheres (53%). Contudo, a pesquisa não abordou, por exemplo, quantos desses casais têm filhos.

Toni e David na companhia de Alyson, Jéssica e Filipe / Foto: Rafael Danielewicz
A distância que separa a vergonha do orgulho
Dos vários convites feitos às famílias para serem retratadas no livro, Simone relata que se surpreendeu com a quantidade de recusas. “Precisava conhecer o porquê desses ‘não’. Descobri que muitas dessas famílias têm medo de se assumirem e sofrerem retaliação, principalmente no trabalho. As pessoas que tinham emprego formal, por exemplo, tinham medo de serem demitidas com a exposição do livro; as que eram autônomas, como médicos e vendedores, temiam perder os clientes”, conta. “Elas acreditam que, em um espaço público mais amplo, elas não devam existir como ‘gays’ ou ‘lésbicas’.”
O preconceito da sociedade também é um problema apontado por Berenice. “Todas as bandeiras das minorias que eu abracei tiveram muitos seguidores, mas a dos homossexuais foi quase uma luta solitária. As pessoas ainda têm medo de se manifestarem publicamente e de serem rotuladas como homossexuais”, afirma. “Elas não entendem que isso já é uma forma de discriminação”. Para a jurista, é urgente transformar a homofobia em crime no Brasil. “A Justiça consegue assegurar direitos, o que ela vem fazendo com desenvoltura e coragem, mas não consegue punir alguém por atos homofóbicos. Para se combater essa verdadeira guerra que existe contra o público LGBT – a cada 28 horas se mata um homossexual no Brasil – é necessária a existência de uma legislação adequada”, defende. Berenice explica que as propostas de lei voltadas para o público LGBT começaram a surgir no país em 1995. “Mas temos um Legislativo absolutamente covarde e até hoje não aprovamos nenhuma lei sobre o tema.”
A criminalização da homofobia está pautada no Estatuto da Diversidade Sexual, proposto por Berenice e pelas Comissões da Diversidade Sexual das Seccionais e Subseções da OAB, em 2011. Até o momento, o documento não saiu do papel. “De nada adianta apresentar propostas no Congresso se as coisas não forem adiante.” Ignorada pelo Congresso, a jurista decidiu apresentar o Estatuto como iniciativa popular. “Eu achei que seria mais fácil ir pelo caminho de angariar assinaturas, mas ainda assim é uma luta difícil, porque as pessoas não se sensibilizam pelo outro, não se colocam no lugar do outro.” Berenice chegou a caminhar pelos parques de Porto Alegre, munida de um megafone, para difundir mais rapidamente as ideias do Estatuto. Sem êxito. “Achei que seria mais rápido pela iniciativa popular, mas não é.”