sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Uma questão de respeito

Respeitar significa não impor determinada visão de mundo em preferência a outra, e sim dar margem para que as diversas visões possam coexistir pacificamente

Toni Reis, O Globo
Respeito se aprende em todos os lugares, na família, na escola, na sociedade. E preconceito também. Como bem disse Nelson Mandela, “ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele ou por sua origem ou sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se elas aprendem a odiar, podem ser ensinadas a amar, pois o amor chega mais naturalmente ao coração humano do que o seu oposto. A bondade humana é uma chama que pode ser oculta, jamais extinta.”
A mídia é um reflexo da sociedade em que vivemos. Porém, além de retratar e reproduzir o que ocorre na sociedade, também desempenha um papel educador, fazendo a difusão de informações e conhecimentos que, caso contrário, não estariam ao alcance de muitas pessoas. É um papel ao mesmo tempo muito forte e também muito delicado. Forte porque tem o poder de atingir as pessoas em massa e influenciar suas opiniões. Delicado porque, sem o devido cuidado e a devida ética, em vez de educar, pode manipular e colocar segmentos da sociedade em posições antagônicas, promovendo discórdia e tensões sociais.
Ao tratar de temas considerados por alguns como polêmicos ou até tabus, a mídia, quando utilizada de forma ética, pode contribuir para elucidar, desmistificar e promover a compreensão do “diferente”, incentivar a reflexão e dar subsídios para o respeito àquilo que antes talvez tenha sido objeto de desprezo e preconceito. Este é fruto da ignorância e do desconhecimento, da falta da capacidade de analisar criticamente as crenças, as opiniões e as informações que nos cercam e que podem formar o “senso comum” capaz de levar à marginalização determinados grupos na sociedade.
Respeitar é diferente de aceitar. Também é diferente de tolerar, no sentido de suportar com condescendência. Não é necessário aceitar aquilo que difere das nossas convicções pessoais. Mas respeitá-lo significa reconhecer que existem diferenças entre as pessoas, e nem por isso necessariamente umas têm mais valia que outras. Significa conviver harmonicamente em uma sociedade indubitavelmente plural, diversa e heterogênea. Significa não impor determinada visão de mundo em preferência a outra, e sim dar margem para que as diversas visões de mundo possam coexistir pacificamente.
Um exemplo da abordagem pelos meios de comunicação de assuntos às vezes considerados polêmicos são as cenas de afeto entre as pessoas nas telenovelas. O primeiro beijo heterossexual nas novelas brasileiras aconteceu em 1952 e provocou um rebuliço. Hoje, quando retratado com sensatez, é visto como um acontecimento natural. Não choca mais, não porque banalizou, mas porque as atitudes predominantes se tornaram mais permissivas.
O primeiro beijo “gay” numa novela da Rede Globo ocorreu entre os personagens Félix e Niko da novela “Amor à vida”, em 2014 — 62 anos depois do primeiro beijo hétero em “Sua vida me pertence”. Também provocou um impacto. Além disso, refletiu que, apesar de lentamente, vem ocorrendo o reconhecimento e a maior visibilidade dos relacionamentos homoafetivos na sociedade brasileira, “com ou sem permissão”, para parafrasear o poeta uruguaio Mario Benedetti.
A Rede Globo é uma das maiores produtoras de entretenimento do mundo e tem contribuído em suas novelas e outros programas para a promoção da dignidade humana. E sempre tem escutado as demandas da sociedade em relação ao respeito aos direitos humanos. Progressivamente, nas últimas duas décadas tem abordado, noticiado e retratado com respeito as vivências de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT).
O ápice da teledramaturgia global neste sentido ocorreu na novela “Liberdade, liberdade”. Houve a primeira cena de uma relação sexual entre pessoas do mesmo sexo, em horário apropriado, com a maior sensibilidade, discrição e com toda a liberdade de criação dos autores. Pôde demonstrar que esta situação existe desde que o mundo é mundo, inclusive nos anos coloniais do Brasil. Em tempos de intolerância, terrorismo, estupros coletivos... uma cena de amor ainda pode chocar, mas é necessária. “Liberdade, liberdade” fez história e vai deixar saudade.
Contemplar a sociedade na tela é uma forma de educar de maneira subliminar para o respeito. Contribui para o que a ONU tem denominado “cultura da paz”, definida como “trabalhar de forma integrada a favor da construção de uma sociedade pautada nos valores de justiça social, igualdade entre os sexos, eliminação do racismo, tolerância religiosa, respeito às minorias, educação universal, equilíbrio ecológico e liberdade política.”
Como gay casado há 26 anos com meu marido, que tem lutado a duras penas no Judiciário para conseguir o cumprimento do respeito à igualdade de direitos, como o reconhecimento da nossa união e a adoção dos nossos três filhos lindos, congratulo a Rede Globo pela sua iniciativa e seu desempenho em promover o respeito a todas e todos, inclusive as pessoas LGBT.
Coexistir (Foto: .coexistence.art.museum)
Toni Reis é secretário de educação da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais